sábado, 14 de maio de 2011

Fídio

Formas de atuação cênica (Interpretação III)

Durante a matrícula nos foi apresentado o componente curricular a que me refiro nestas observações. A nomenclatura me deixou confusa, mas ao mesmo tempo ansiosamente alegre. Prenunciava que iríamos, finalmente, partir para os finalmente, como se diz na linguagem popular.
Após alguns desencontros, eis que chega o grande momento: descobrir o que nós iríamos estudar e como seriam as aulas, enfim, conhecer a programação e, principalmente a professora. Ah, Lilih, que presente! E tivemos a satisfação de ver concretizar nossa ansiedade: iríamos estudar formas de atuação cênica.
O trabalho corporal proposto por Lilih nos remeteu ao movimento consciente, à presença na cena. À ação.
Foi assim que quando dei por mim já estava na Sala 5, no Ato de 4! A tensão e o prazer se misturaram e resultaram numa satisfação daquelas que deixam a gente sorrindo sem saber do quê e ao mesmo tempo concentrada, criando, sentindo e imaginando a vida da personagem.
A voz foi o que chegou primeiro. Lembrei-me imediatamente de um “crente” que vi várias vezes na Estação da Lapa; ele pregava com uma bíblia na mão e a outra tapando o ouvido, para sentir o retorno de sua voz.
Depois, lembrei-me de uma irmã minha que é freira e quando ela está pregando para nós ela pronuncia bem as palavras e deixa que o “z” de luz sibile.
E o corpo curvado para frente, olhando por baixo, incrivelmente, veio do meu diretor, num dia após o almoço, nos corredores do órgão em que trabalho. Ele anda devagar e não encara ninguém; nós nos conhecemos desde o tempo em que fizemos concurso; a mim, ele não pode negar a fala. Levantou os olhos, não a cabeça e balbuciou “boa tarde” de forma quase inaudível. Era Fídio, todo!
Depois veio a invenção. Fídio é de origem pobre, sempre morou na periferia, não se dedicou aos estudos e logo foi cooptado pelo mundo das drogas. Não demorou muito, foi preso e passou alguns anos na prisão. Lá, recebeu ensinamentos bíblicos, que pelo menos o mantiveram afastado do aprendizado e aperfeiçoamento promovido pelo tráfico.
Saiu da prisão por bom comportamento, era primário. Fídio não é uma pessoa má. Ele é alienado. Seus valores diferem dos valores de quem desenvolveu uma sensibilidade crítica. Ele não se enxerga. Não se vê. Não sabe que é um ser pernicioso, desprezível; ele luta pela própria sobrevivência com as armas que tem: ignorância e alienação.
Encontra Lilbé, numa ponta de calçada, embaixo de um viaduto, ele não sabe bem onde a encontrou; uma menina, uma mulher, um corpo para o prazer. Juntos cometem atos que denotam serem desajustados, inconsequentes e desprovidos de amor por si mesmos, pelo próximo e pela vida.
Fídio e Lilbé não têm espelhos, não se miram. São seres errantes que vegetam por aí, contrariando a natureza e o meio do qual são produtos. 
(Por Salete Saraiva)

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